não conte pra mamãe

13.10.04

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Quando você viaja de classe executiva, tem direito a ficar na sala vip da companhia aérea. Lá geralmente, eles colocam uns salgadinhos, uns sofás confortáveis e bebidas de graça.
Tudo parte da estratégia de fazer você pensar que é realmente um sujeito very important, e, convencido disso, na próxima viagem pague o dobro do peço de uma passagem normal por um cotovelo a mais de poltrona.
Alguém que merece ser tratado com alguma dignidade, livre do calor humano do passageiro ao lado. Em troca de uma passagem imoralmente mais cara. Confesso que toda vez que alguém paga para que eu viaje em classe executiva, não sou capaz de negar. Tudo por causa da sala vip.
Gosto de fazer parte daquele grupinho de pessoas que, a cada vôo, organiza rapidamente uma espécie de complô contra os passageiros da classe econômica. São um punhado de estranhos que rapidamente estabelecem um vinculo entre si. Passando pelos portais da sala vip, qualquer um fica mais educado. O sujeito vai pegar um suco de laranja e dá passagem para outro, num educado gesto de cabeça enquanto um outro senta-se confortavelmente para ler o fac-símile do New York Times.
Na sala vip da classe executiva, o mundo é como deveria ser. Com a vantagem de você saber que em algum outro ponto obscuro do aeroporto, estão os passageiros da econômica, sentados em cadeiras duras, com fome e com sede. A musica é suave e você pode desfrutar em paz, o prazer de ser especial.
Ninguém descobriu ainda uma maneira de separar os passageiros de primeira classe dos de classe executiva, dentro da sala vip. Ficam todos misturados, trocando gentilezas. Se você for perspicaz, rapidamente percebe quem são os primeira-classe. Pelo corte de cabelo ou pelos sapatos, sempre dá pra descobrir. Eles não se identificam porque guardam o melhor para o final.
Gostam de saborear os poucos segundos do embarque, quando você é obrigado a passar por suas gigantescas poltronas de primeira classe para encontrar o seu lugar na executiva. Por isso não acho justo os aviões onde a primeira classe fica à esquerda e a executiva à direita. Percebe? Faz parte do preço da passagem que uma classe menos privilegiada passe pela outra. No avião e no mundo deve ser assim.
Você passa pela primeira classe numa lenta procissão reverenciando o status. A ética manda que você não sorria, nem cumprimente os passageiros de primeira classe, mesmo que tenha sido gentil com ele na fila do canapé de caviar da sala vip. Agora, sua cumplicidade acabou. Vocês são de castas diferentes. Você que encontre sua poltrona na executiva e aproveite para olhar nos olhos de todos os passageiros da econômica que passarão por você.
Você se senta e começa o desfile. O bom senso e a educação mandam que as aeromoças não sirvam nada até que a maioria dos passageiros de econômica estejam devidamente empilhados lá atrás.
Cabe a você, portanto, escolher o passageiro que mais se pareça com seu vizinho e quando ele passar, você pede delicadamente uma champagne para a aeromoça, que – na executiva – sempre está por perto.
Faz parte do jogo que os de econômica fiquem morrendo de curiosidade a respeito dos prazeres que estarão sendo privados. Alguns aviões tem cortinas separando as classes, não para evitar constrangimentos, como você poderia imaginar, mas sim para tornar a curiosidade ainda maior. Alguns viajantes de executiva relataram que passam boa parte do vôo tentando descobrir o cardápio do jantar da executiva, olhando apenas pelas frestas da cortina.
Não é o caso do meu pai.
Na primeira vez que meu pai viajou para Nova York, acostumado com anos e anos de ônibus, sentou no primeiro acento disponível. Ninguém explicou que o avião tem lugares marcados. Então ele escolheu um perto da janela. Minha mãe ficou com o do corredor. Embarque completo, check de portas, a aeromoça oferece champagne. Meu pai nunca bebe, mas com oito horas pela frente, por que não? Brinda com minha mãe. Os dois sorriem, surpresos com o conforto das poltronas e alheios a uma calada movimentação das aeromoças.
Muito antes da demonstração do equipamento de segurança, a aeromoça já havia descoberto que os dois passageiros que faltavam na econômica eram meu pai e minha mãe. E já os havia mandado para seus devidos lugares, bem perto da asa.
Meu pai estranhou o aperto do acento. Mas por poucos minutos.
A champagne faz efeito rápido.