não conte pra mamãe

29.1.07

91

Não é todo mundo que sabe, mas a água nos ralos do hemisfério norte, gira - ao contrário daqui - no sentido anti-horário.
Apenas esse fato isolado, facilmente explicado pela física, já serviria para provar como nós e eles somos diferentes.
Mas não é só isso.
Nunca me acostumei, por exemplo, com as portas dos prédios de Nova York - para sair - abrirem para fora, quando todo mundo sabe que portas de saída (exceção às de emergência) devem abrir para dentro.
Até pelo simbolismo de - ao abrir - uma porta trazer o lado de fora para perto de você.
Mas os americanos são assim.
A água gira no sentido contrário, as portas abrem no sentido oposto.
E imagine quantas outras diferenças sutis não devam existir entre nós e eles.
Fade out.
Fade in.
Estou parado na recepção over-acarpetada do hotel, de frente para a porta de saída, esperando Olivia vestir seu casaco de nylon rosa.
Tem capuz com pelos e isso é uma grande novidade para uma criança-tropical-de-cinco-anos.
Está frio lá fora. E estaria escuro, não fosse a profusão de luzes de Natal nos prédios da Park Avenue.
Olho o termômetro: quase um grau, que por sua vez, é quase zero graus.
Quase nem um grau sequer de calor.
Oli puxa meu sobretudo.
O capuz peludo está levantado e o cachecol sobre a boca, de modo que só os olhos estão à mostra.
Manu, Catu e Luli estavam no quarto, prontas para dormir.
- Onze da noite não é hora para uma criança de cinco anos sair à rua!
- Mas não foi pra isso que viemos, mãe? - perguntou Olivia, ainda no quarto, conquistando o direito do passeio tardio.
Os dois olhos mais curiosos do mundo estão prontos para Nova York.
Penso: "empurrar ao invés de puxar" - e empurro a maçaneta.
A porta se abriu e um frio polar foi soprado sobre a gente.
Olhei para Olivia que arregalou os olhos, divertida com o frio.
- Não foi por isso que viemos? - perguntei rindo.
Duas noites antes do Natal.
Dobramos à direita em direção ao Central Park.
De mãos dadas, naquela noite, andamos mais de dez quadras.
Quase em silêncio.
Não era preciso dizer nada.
Olivia e eu, de mãos dadas, quem diria.
Eu e minha filha em NY.
Seus olhos olhavam em volta e, vez ou outra, perguntava algo ou, como sempre faz, chamava a atenção para alguma coisa que eu não tinha percebido.
Uma roda de charrete. Um taxi amarelo. Uma limousine esticada. Uma árvore. Uma vitrina.
Olivia gosta de detalhes.
E de caminhar de mãos dadas.
Foi nessa noite que aprendi isso.
Não existe lugar no mundo como Nova York no Natal.
O frio, as vitrinas, a fumaça saindo dos bueiros, as luzes.
Passamos por um restaurante italiano todo iluminado.
Passamos por uma loja na Lexington com vitrinas inspiradas em Andy Warhol.
Contei a ela que quando eu tinha 18 anos, fiz meu próprio guia-NY-Andy-Warhol e vim para cá, conhecer cada lugar por onde ele havia trabalhado.
Mas ela não ligou para nada disso, porque estava entretida contanto quantos segundos levava para o farol com o homenzinho vermelho mudar para verde.
Chegamos na loja da Apple pouco depois da meia noite.
Precisávamos descansar e nos aquecer.
Olivia baixou o capuz e tirou o cachecol.
Nunca vi um sorriso tão lindo.
Olivia conheceu Nova York.
E eu conheci a Olivia.
Mission acomplished, como diriam esses americanos esquisitos.

90

Schopenhauer tem uma imagem interessante.
A idéia de que os jovens encaram a vida como crianças na frente de uma cortina de teatro.
Ansiosos, excitados com o espetáculo que está para começar.
Quando a vida passa, esse brilho de excitação desaparece.
As perdas, as doenças, os amores perdidos, as mortes, as decepções, as inseguranças, os fracassos, transformam esses espectadores em sujeitos tristes e vencidos.
Se pudessem saber as decepções que os esperam, não seriam tão felizes, os jovens.
Isso quem diz é Schopenhauer.
Só li o que ele escreveu, não me julgue.
Quem sou eu para concordar ou não.

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Domingo à noite fui a uma pizzaria com minha mulher e minhas filhas.
É um programa corriqueiro, quase medíocre.
Sentamos, pedimos a pizza, revemos o que aconteceu no final de semana, o que vai acontecer ao longo da semana, enfim, é só uma pizza.
Não é exatamente um momento onde a gente vibre de excitação, como você pode imaginar apesar de, sempre que estamos juntos, existe a satisfação desse convívio.
Na mesa do lado, estavam dois homens de trinta e poucos anos, com suas mulheres.
Os sujeitos conversavam e riam alto, como se aquele fosse um momento de grande alegria.
Fiquei olhando para eles tentando entender tanta felicidade.
Para eles, aquele parecia ser - sem razão aparente - um momento especial como...não pude deixar de pensar em Schopenhauer...o momento que antecede a abertura das cortinas de uma peça de teatro.
Como podem ser tão felizes numa pizzaria?

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Não sou um sujeito amargo.
Mas quando vejo gente dançando, bebendo, rindo, ou - principalmente - nestas semanas que antecedem o Carnaval e a televisão exibe esse pastelão de desfiles de escolas de samba, esses sambas todos iguais, essa gente pulando sem motivo, toda essa alegria com hora marcada, arrisco - pretenciosamente - compreender Schopenhauer.
Acho que ele não se referia aos jovens literalmente.
Na verdade, ele dividiu o mundo entre os que esperam uma comédia começar, excitados, festeiros, com suas caipirinhas em punho de um lado, e de outro os que já sabem que a peça é boa, é verdade, mas não é fácil de entender nem tem piadas fáceis.

24.1.07

89

Em Buenos Aires, toma-se muito vinho.
Não é o consumo metido, como o daqui.
Vinho, em Buenos Aires, é bebida simples, corriqueira.
É um prazer que acompanha uma refeição.
Você não precisa conhecer profundamente do assunto.
Nem fazer caras e bicos.
Não precisa pagar 500 dólares a garrafa.
Pensando bem, não precisa pagar 20 dólares a garrafa para apreciar um bom vinho.
Alias, a própria idéia de "apreciar um bom vinho" já traz em si uma certa empáfia, típica dos brasileiros que consomem vinho como símbolo de status.
Em Buenos Aires, vinho é coisa simples.
Em Buenos Aires, a frota de veículos é velha.
Melhorou muito na última década.
Mas ainda é antiga.
Carro, por lá, não é um símbolo de status, como é por aqui.
Lá não existem carros que custam o mesmo que uma casa.
E mesmo as casas, muito bem cuidadas por lá, custam muito menos que aqui.
Lá não existem esses nossos portões de garagem inflados, sabe quais são?
Esses que avançam sobre a calçada, para caber o carro do proprietário.
Um sujeito que coloca uma SUV num sobradinho de 70 metros quadrados.
Os argentinos riem disso quando vêm para cá.
Para eles, é incompreensível que o sujeito viva apertado, mas compre um carro que sequer cabe na garagem e depois tenha que modificar o portão apenas para acomodar seu ego.
Em Buenos Aires, não existe essa poluição visual inaceitável de out-doors, placas e cartazes em cada esquina.
Essa mesma poluição que o Kassab está tentando dar um basta, a despeito de toda a dificuldade imposta pela nossa medíocre e míope elitizinha publicitária que mais se preocupa com o próprio bolso do que com os outros 17 milhões de habitantes que são obrigados a conviver com esse lixo visual.
Em Buenos Aires a publicidade out-of-home é mais organizada e limitada a espaços menos invasivos do que por aqui.
Em Buenos Aires, cidade é para viver, casa é para morar, carro é para passear, e vinho é para beber, olha só que simples.
É uma vida mais frugal e mais lógica que a nossa.
E bem os argentinos, famosos por seu orgulho exagerado, nos dão um baile de simplicidade.
Porque será?
Arrisco uma teoria.
Somos um povo miscigenado demais, heterogêneo demais.
Um povo cujos sonhos sempre estiveram ligados à idéia de ascensão social.
Um povo cuja elite sempre foi exclusiva e não comprometida.
Subir da senzala para a casa grande sempre foi uma improbabilidade.
Essa herança deve estar em algum canto do nosso DNA cultural.
Esse desejo de se destacar da base da pirâmide a qualquer custo.
Assim, nossos símbolos de prosperidade estão em toda a parte.
Olha só o meu relógio.
Olha só o meu tenis.
Olha só o meu carro.
Olha só como eu entendo de vinho.
Olha só.
Na Argentina, ao contrário, essa história deles serem "um pedacinho da Europa", lhes provê uma segurança atávica, que lhes autoriza a não precisar provar nada para ninguém.
Um jeito de viver que os isenta da constante reafirmação de status.
Lá - na média, já que obviamente existem exceções - quem é mesmo chique, não ostenta.
Se orgulha de conseguir pagar pouco numa liquidação.
Aqui, neguinho compra calça Diesel falsificada na 25 de março e diz que pagou uma fortuna no shopping.
Olha só.
Talvez por isso, por serem tão seguros de si e orgulhosos de sua condição, os argentinos não admitam que sejamos nós, "los monitos", tão evidentemente superiores no futebol.
E que Pelé seja infinitamente melhor que Maradona.
Ora, por favor.
(eu sei que essa superioridade não muda nada na prática, mas por dever cívico eu não iria terminar um texto botando os argentinos lá em cima.)

17.1.07

88

É triste viver num país onde o salário é baixo e o custo é alto.
Mas nada me chama mais a atenção do que os custos de automóveis importados.
É nessa hora que fica estampada a nossa condição de republiqueta.
Veja: o mesmo modelo Toyota que aqui custa 70 mil dólares, custa 40 mil em Buenos Aires, e pouco mais de 25 mil nos Estados Unidos, onde as condições de pagamento e os salários são infinitamente melhores que os nossos.
Sempre achei - ao contrário da dona da Daslu - que devem se cobrados impostos sobre artigos supérfluos. Enquanto existam brasileiros sem comida, saúde e educação, os brasileiros que tomam whisky importado, fumam charutos cubanos e desfilam com seus carros importados, devem realmente ser sobre-taxados.
Mas convenhamos: a bandalheira é tão grande, que estes quase 200% de incremento no preço de um veículo importado, jamais cumpre sua função social.
Pelo contrário, acaba utilizado de maneira absolutamente imoral, em última análise, para subsidiar - por exemplo - o aumento de nossos nobres deputados.
Além disso, estes impostos abusivos remontam ao milagre econômico, resquício do governo militar, num ato primário de proteção da indústria nacional, que continua a nos impor veículos cuja tecnologia está obsoleta em qualquer parte do mundo.
O resumo é esse: carros importados custam caro por causa dos impostos.
Os impostos são mal utilizados.
Carros nacionais estão sucateados, enquanto lá fora a mais moderna tecnologia - inacessível para nós - está cada vez mais disponível.
Não tem lado bom.
Nem solução no curto prazo.

10.1.07

87

Preciso confessar uma coisa.
Um problema que tenho faz tempo.
É que eu adoro os produtos da Apple.
Eles lançam de lá, eu compro de cá.
Só iPods, tenho 6.
Dois videos, 3 nanos e um primeira geração, tipo relíquia.
Também tenho um Color Classic original, rodando Photoshop 1.0
Um iMac, um MacBook Pro, um MacBook.
Até um Newton eu tenho!
Dei um iMac velho para o meu pai.
E assim vai.
Pois bem, há anos venho desenvolvendo esta compulsão pelos produtos da Apple.
Agora eles lançaram o iPhone.
Só estará disponível em junho e mesmo assim, só nos Estados Unidos.
E agora?

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No canal GNT, está na moda a palavra "iconoclasta". Vira e mexe vem alguém e fala. Outra dia, um sujeito disse que o japonês é um povo que preza muito a linguagem gráfica e visual, por isso, os japoneses seriam "iconoclastas". Dá para imaginar de onde vem o mal entendido. O entrevistado deve pensar que iconoclasta vem de ícone + "clasta", que lembra "casta", sei lá. A casta do ícones, deve pensar. Então vamos combinar que iconoclasta é exatamente o sujeito que condena o culto de imagens. Ou seja, se os japoneses são ou não iconoclastas, definitivamente não se deve ao seu amor pelos ícones.

1.1.07

86

Acabo de voltar de Nova Iorque.
Não sou marinheiro de primeira viagem.
Nos últimos 20 anos fui dezenas de vezes para NY.
Foi a grande cidade dos anos 80.
Fiquei lá desde períodos de poucos dias até várias semanas. No west side, no east side e no soho.
Posso não ser uma Katia Zero, mas não sou iniciante.
E posso dizer sem medo de errar: NY, a cidade que já foi a mais interessante do mundo, está decadente.
A razão é simples. O caldo cultural que transformou a cidade numa espécie de porto-livre do planeta, onde todas as culturas se encontravam por períodos curtos, mas onde nenhuma era hegemônica, se dissipou e NY se transformou na maior cidade latina do mundo.
Note que o fato de serem os latinos que tomaram posse não é a causa do problema.
É só um sintoma.
Não sou preconceituoso com nossa própria raça.
Diria o mesmo se fossem americanos ou dinamarqueses.
Ocorre que quando uma única etnia domina a cidade, o charme principal desaparece.
NY se transformou numa cidade entupida de turistas, que vão lá para ver o que restou da NY do final do século passado.
E a mão de obra latina é mais barata para servir a esta multidão.
Na prática, não tem nada de realmente revolucionário na NY de hoje.
E para ajudar a piorar o quadro, a globalização e a blogosfera, torna tudo menos novidade, tudo é mais comum do que era há 15 anos.
A multidão, por sua vez, é tratada como tal: como multidão. Ninguém é especial.
Um jantar, por exemplo: saia do hotel, pegue o taxi, desça do taxi, escolha uma das milhões de escolhas do cardápio feitas para criar a ilusão de que existe uma opção criada exatamente para você. Mas não se engane. Não existe. Na verdade, a miriade de opções só servem para evitar que você queira algo específico, algo exclusivo.
Em NY, ninguém mais é exclusivo.
Ninguém merece tratamento diferenciado.
A fila, militarmente organizada, para ver as vitrinas das lojas importantes é mais um sintoma grave.
Olhe and step asside, para deixar o próximo olhar.
A NY de Woody Allen, de Frank Capra, de Tommy Dorsey, de Bing Crosby está por ali, como numa vitrina a céu aberto.
Mas é só para olhar.
Se tocar, vira Cidade do México na hora.