não conte pra mamãe

21.10.05

27

Duas idiossincrasias.

Domingo tem votação.
Você é obrigado a votar.
Bem, não é completamente obrigado.
Se você quiser ir para a praia, também pode.
Basta passar numa seção eleitoral de lá da praia.
Ali você preenche um papel e diz que decidiu ir para a praia ao invés de votar e está tudo certo.
Mas eu, que não quero nem ir votar nem ir para a praia, não posso fazer o mesmo.
Tenho que votar.
Não tem, lá na minha sessão eleitoral, nenhum papel onde eu possa justificar que não quero votar.
Para o meu caso, não tem jeito.
Não me parece justo.
Acho que se deveria poder justificar a não-votação na sua própria sessão.
Como quem vai para a praia.

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O presidente Bush colocou sua própria advogada na Suprema Corte.
Ao invés de escolher um jurista destacado, escolheu sua advogada.
No começo, alguns setores chegaram a elogiar o despreendimento do presidente.
Afinal Harriet Miers, a advogada, parecia ter posições liberais.
Parecia, porque agora já se sabe que ela trabalhou numa campanha anti-aborto há alguns anos, o que demonstra que deve ser apenas mais uma conservadora texana, como seu chefe.
Mas o pior é que recentemente o próprio Bush defendeu sua escolha com um argumento curioso:
Miers é uma fervorosa católica.
Agora espere um pouco.
Desde 2001, Bush tem suportado sua guerra anti-terorismo, com a idéia de que deve-se separar a religião da política.
Tirar os muçulmanos do poder, é basicamente o que ele quer.
Se assim é, que importância tem o fato de Miers ser católica, para sua indicação?

13.10.05

26

Em tempos de Severinos, Jefersons, Dirceus e Jenoinos, pode-se facilmente imaginar que Lula é farinha do mesmo saco.
Ou é tacanho, ou é desonesto.
Engano.
Lula é a mais genial figura política da história recente do Brasil.
Não me refiro especificamente ao Presidente. Falo do Político Lula, num sentido mais amplo.
Se tem alguém capaz de superar uma crise, esse alguém é Lula, um emigrante nordestino desnutrido, que chegou à Presidência da Republica depois de ter sido o maior líder sindical do país bem no meio da ditadura.
Então não ache que ele não sabe como sair dessa.
Alias, a crise atual é, talvez, uma das mais fáceis que ele já superou.
Não o subestime.
Em plena repressão, Lula preso na polícia federal lá dá rua Maranhão, conseguiu convencer seus próprios carcereiros a esconde-lo dentro de um fusca e levá-lo a visitar sua mãe doente.
Não o confunda com padres que fazem greves de fome.
Não se deixe levar por seus erros gramaticais.
Esse homem é forte.
Não o confunda com essa gente que o cerca.
Na nossa história recente, os problemas são tantos e se empilham de tal maneira, que nenhum partido chega ao poder sem um projeto de perpetuação. O próprio PSDB assumia que precisava de 25 anos no poder para “mudar o Brasil”.
Lula e o PT não foram diferentes. O equívoco de Lula foi entregar a gente despreparada e/ou radical e/ou desonesta, o financiamento de seu projeto de perpetuação no poder.
Não foi muito diferente de FHC.
Lula é pragmático nas suas estratégias. Se forem necessárias alianças escusas, ele fará.
Alias, também como FHC fez, em sua controvertida aliança com ACM.
Caetano Veloso não estava enganado quando afirmou que Lula e FHC são apenas duas faces da mesma “esquerda da USP” no poder.
Por tudo isso, engana-se quem acha que Lula está acabado.
Não está.
O país vai bem economicamente. Bate recordes na balança comercial. Tem a inflação controlada, a moeda está forte. A classe rica está cada vez mais rica. A classe pobre não tem como piorar e nunca imaginou que fosse melhorar, além disso, se identifica com Lula e a ela pouco importa quem rouba o que em Brasília, acostumada que está com a bandalheira que lá sempre reinou.
Lula é forte candidato à reeleição.
O projeto de evitar a reeleição cortando seus contatos com o Congresso e enfraquecendo o partido através da derrocada de seus principais líderes, funcionou mas não está concluído.
Lula não tem mais Dirceu, nem Genoino, nem Gushiken.
Lula está sozinho.
E isso nunca o assustou.

6.10.05

25

Em todos esses anos lendo a Veja, jamais fiquei tão indignado com o posicionamento da revista em relação a qualquer assunto que fosse.
Surpreendente o fato da revista Veja largar na frente e mostrar um reacionarismo renascido que só poderíamos esperar de veículos mais conservadores.
Antes de questionar o posicionamento da revista com relação ao referendo que se aproxima, é evidente que devemos questionar se é mesmo ético para um órgão de imprensa assumir um papel tão professoral, tão deslavadamente tendencioso e defender tão agressivamente seu ponto de vista, sem nem sequer dar espaço à posição oposta, às vésperas de um plebiscito.
Afinal, nunca se viu a Veja conclamar na capa: Não vote em Collor. Não vote em Maluf.
A alegação que inicia a matéria de capa da edição de 5 de outubro já deixa transparecer a evidente atitude tendenciosa com que a revista irá lidar com o assunto: “Veja acredita que a atitude que melhor serve aos interesses dos seus leitores e do país é incentivar a rejeição da proposta de proibição [da venda de armas de fogo]”.
Ora, desde quando os leitores de Veja deram uma procuração à revista para que esta defenda seus interesses? Desde quando, os leitores de Veja pensam todos da mesma maneira?
Desde quando é papel da imprensa, mais do que analisar prós e contras e informar, criar um tutorial já digerido, subjugando seu leitor como o fez na matéria em questão. Por que não investigar os dois lados da questão e apresentar dados de maneira isenta, para que o leitor chegue às suas próprias conclusões?
Para desqualificar o referendo, a revista parte então para um sofisma. Troca a pergunta, apenas como forma de confundir o leitor. Na matéria, Veja sugere que a questão correta do referendo deveria ser: “o Estado brasileiro pode tirar das pessoas o direito de comprar armas de fogo?”
Colocando o Estado como o sujeito da pergunta, Veja tenta confundir o leitor, fazendo parecer que uma entidade intangível, o Estado, cerceará o direito de possuir armas de fogo.
Ora, um plebiscito é o único momento onde Estado e Sociedade passam a ser uma unidade. O voto do povo é a expressão da sua vontade. E, numa Democracia, deve ser apenas espelhada pelo Estado. O povo votando, pode tudo, proibir ou liberar. Ao contrário de um Estado Autoritário que Veja tenta criar, quem dirá não às armas é a sociedade ao votar “sim”. E não o Estado.
Diferente do que a revista propõe, a pergunta é absolutamente pertinente. O referendo pretende comprovar se a sociedade quer ou não que exista acesso do cidadão comum, obediente às leis, às armas de fogo.
Aliás, confundir parece ser o objetivo principal da matéria.
E o faz algumas vezes com argumentações ingênuas. Por exemplo, segundo a revista, o 38 doméstico não pode ser proibido, pois é a única maneira de defender-se da granada, dos fuzis e das armas pesadas que os criminosos continuarão utilizando.
Sugere que só podemos proibir o cidadão comum de comprar armas se conseguirmos que o criminoso também seja proibido.
Como se o arsenal doméstico pudesse se equivaler ao do crime.
Estamos absolutamente reféns dos criminosos. Seu arsenal não é apenas superior ao do cidadão comum. É superior ao da polícia. E, no caso do crime organizado, é superior em certos pontos - em número e em poderio - ao arsenal do Exército.
Assim, é um engano alegar que o cidadão – ao não comprar armas - não poderá se defender. Um cidadão armado não é capaz de se defender muito mais do que o desarmado, pois o criminoso terá sempre mais armas, mais treinamento, mais balas e mais condições de se armar contra a população comum.
A posse da arma do cidadão comum é apenas transitória. Pode muito contra o ladrão de galinha. Ou provê uma falsa sensação de segurança apenas até que seja roubada. Tem pouca ou nenhuma eficácia quando confrontada com criminosos realmente preparados. Não tem eficácia nenhuma para baixar os índices de criminalidade. Aliás, só os aumenta.
A própria Veja atesta o vencedor n um confronto final entre cidadãos e criminosos. Os primeiros possuem 2 milhões e meio de armas. Os últimos, 8 milhões. As armas da criminalidade superam em quase 4 vezes a dos cidadãos. Em termos estatísticos, para cada arma que um cidadão sacar, 4 serão apontadas para ele.
Finalmente, a matéria expõe sete razões pelas quais se deve votar contra a proibição da venda de armas.
Como a revista não o fez, proponho a reflexão de outros aspectos de cada um dos argumentos:
1. Inicialmente, Veja compara o comportamento da criminalidade entre países que proibiram as armas de fogo. Mais exatamente, a revista vai buscar a questionável Jamaica: 31 mortes por armas de fogo em cada 100 mil habitantes e a compara com a Suíça, onde a venda é permitida, com 1 morte para cada 100 mil. Compara Jamaica com Suíça, como se fossem países equivalentes em condições sociais, educação, e condições de vida. Por que não comparar Suíça com Japão, que proibiu as armas e tem taxas de 0,6 para cada 100 mil. 40% inferior à do país europeu.
2. No segundo argumento, a revista alega que “armas não transformam cidadãos em assassinos”. Ora, a maior parte dos crimes da periferia ocorre com armas de fogo, entre cidadãos que vivem a menos de 100 metros de distância. E sem ficha criminal. Boa parte destes crimes não tem nenhuma relação com assaltos. São apenas desavenças. Armas possibilitam que o cidadão se transforme sim em assassino. Por engano, por falta de controle, por falta de preparo. Não necessariamente pela violência que nos rodeia. Armas são evidentemente um multiplicador do medo e da violência. E, num país com baixíssimas condições de educação e renda, é uma temeridade que as armas de fogo estejam disponíveis.
3. Veja então associa o totalitarismo com o desarmamento. Equívoco histórico no caso de Hitler, já que na Alemanha o desarmamento ocorreu muito antes de Hitler subir ao poder. Aliás, por essa lógica, seria coerente afirmar que a baixa inflação ou a performance econômica promissora também estão associadas ao totalitarismo, uma vez que durante o nazismo, a Alemanha experimentou um período recorde de crescimento econômico.
4. A seguir, a revista afirma que a polícia brasileira não é capaz de nos defender. Verdade. Mas desde quando a solução, então, é que o cidadão se defenda com os próprios punhos e armas? Se assim fosse, seria fácil resolver os problemas na Saúde com a auto-medicação. Ora, a polícia realmente não nos protege, mas este é um problema cuja solução não passa pelo armamento da população.
5. Segundo a revista, a proibição vai alimentar o comércio ilegal de armas. Então que se libere tudo que é proibido. A cocaína, a heroína, o crack. Esse é mais um equívoco ingênuo da revista. Alegar que o comércio ilegal de armas vai crescer apenas é uma maneira de distorcer os fatos. O comércio ilegal é um crime e deve ser combatido. Mas o que é ilegal não pode reger a existência de leis. Não temos as leis porque são mais fáceis ou difíceis de serem cumpridas.
6. Aqui talvez a mais infame das argumentações da revista. É evidente que os criminosos não vão obedecer a proibição. Leis não são feitas para criminosos. É por isso que são criminosos. O que se sugere? Que façamos apenas leis que os criminosos obedeçam? A questão principal é se queremos ou não facilitar o acesso do cidadão médio, obediente às leis, às armas.
7. Finalmente, a matéria volta a sugerir que o referendo na verdade quer lançar uma cortina de fumaça sobre “o que realmente deve ser feito: a limpeza e o aparelhamento da polícia”. A questão e o referendo são claros. Não têm a ver com a questão do aparelhamento da polícia. Não que esta questão seja mais ou menos importante. Ocorre que não é o que se está questionando. E não devemos perder a oportunidade de caminhar no sentido de reduzir as armas na sociedade, apenas porque talvez existam questões mais importantes.
Repudio o direito de um veículo tentar influenciar tão deslavadamente um referendo público.
Repudio a posição assumida da revista Veja de, ignorando a escalada de violência em que vivemos, sugerir que a população se arme para se defender.
Repudio a argumentação, no mínimo questionável e o tratamento evidentemente tendencioso que a revista deu a um assunto tão importante, reduzindo ou ignorando os possíveis argumentos que contrariassem sua posição.
Não é assim que se comporta a imprensa séria.