não conte pra mamãe

31.10.04

8

Três meninas dividem um apartamento em Tokio. Quatorze, dezessete e dezoito anos. Não fazem idéia de quanto são crianças. Todos que estão em volta delas, a agência de modelo, os produtores, os fotógrafos, até os pais, todos estão a enganá-las. Não deixam que saibam que são crianças. Enquanto isso, moram num apartamento onde tudo é temporário. Por ali, já passaram e vão passar outras crianças. Não sei como estudam, nem se estudam. Não precisam estudar. Não é o primeiro país que conhecem. Conheceram a China, os Estados Unidos, algumas a Europa. Mas não estão fazendo turismo. Estão fazendo carreira. Na geladeira tem um lembrete para que não comam muito. A saudade deve ser amainada com outros prazeres, que não os gastronômicos. O apartamento tem dois quartos, mas elas dormem juntas para dividir o afeto. Preocupam-se com a beleza, mas não a de suas próprias vidas. Estão sozinhas e magrinhas. São crianças pagas para fazerem poses sensuais, sugerirem sua sensualidade imatura. São meninas que vendem um mundo que está apenas nas fotos. São lindas vivendo uma vida feia.É quase escravidão. A liberdade não lhes foi tolhida. Não estão lá porque querem. Estão lá porque pensam que querem. Estão lá porque foram enganadas.

18.10.04

7

Deve ter sido o Silvio Santos que inventou.
Um estilo "la-la-la" de comunicação.
Mas o estilo pegou e neste país, tudo vira musiquinha.
Da palha de aço ao futuro presidente, tudo vira rima.
Em campanha política a coisa sai do controle. Não importa o que se queira dizer, tudo soa mais eficiente em musiquês.
É ridículo. Toda sorte de absurdo, cantado de maneira singela.
O sujeito roubou, vira jingle. Neguinho sumiu com o dinheiro público, vira samba. Estamos fadados a festejar quem nos engana.
A campanha da prefeitura por exemplo. Neste segundo turno, elegeram o Pitta como tema. Os dois candidatos trocam as mais sórdidas acusações, em ritmo de marchinha de carnaval. A verdade é que toda a equipe do antigo prefeito está permeando a eleição atual. Seja como equipe de um candidato, seja como vice do outro. Ao invés dessa notícia ser informada com a incredulidade devida, nós, eleitores, ficamos sabendo como? Cantando o refrão.
A música, neste caso, serve para reforçar a mensagem de bandalheira. Do descaso que um candidato cantor tem pelo outro.
Agredir cantando traz uma espécie de desprezo pelo inimigo. Uma maneira de dizer que o sujeito não é sério. Dar ao caso informalidade carnavalesca, sequestra a seriedade real do problema e desqualifica o adversário.
Esquecem, os dois, que essa informalidade, ofende o eleitor. Desrespeita o que é sério e impõe à eleição, o caricaturesco só aceitável nas campanhas de palha de aço.

17.10.04

6

Sou um sujeito urbano.
Gosto de transito, gosto de poluição.
Mas tenho notado que ultimamente tem uma espécie de doença que contamina quem procura um estilo de vida alternativo, nas cercanias das grandes cidades.
Eu não troco cinco anos a mais de vida por uma casa cercada por cobras.
Mas muita gente não pensa como eu e tem sido infectada. Por sorte a doença tem cura sem necessidade de medicação.
Você percebe que o cara que trabalha ao seu lado é vítima deste mal, quando se ve obrigado a escutar, todas as segundas-feiras, as qualidades dos inúmeros condomínios que cercam a cidade. “Não...você não vai acreditar! Dá pra ter uma vaca no quintal!”.
Pronto. O sujeito contraiu a doença. Você pode ter certeza que agora é uma questão de tempo para que ele troque seu apartamento, ao lado da padaria e do videoclube, por uma casa atolada no barro.
Ele agora vai desenvolver a doença, em quatro fases.
A primeira é simples. O sujeito está feliz e seguro de sua decisão. Você só não pode fazer uma determinada pergunta.
Se fizer, o sujeito já tem a resposta na ponta da língua: “Longe? Imagine! Eu garanto que levo o mesmo tempo para chegar na minha casa que você na sua. Eu saio da Marginal e pronto. Cheguei.”
Passa o tempo e todos começam a notar que o sujeito é o primeiro a chegar e o último a sair do escritório.
Se você perguntar se ele está chegando cedo por causa do transito, a resposta também vem pronta. “Transito? Que nada. Basta evitar os horários de pico, das 7 as 9 da manhã e das 5 as 9 da noite.”
Esta fase dura uns dois anos, até que a vida social da família começa a se deteriorar.
Chega a terceira fase. “Aquilo é um paraíso. As criança adoram...adotaram uma paca, veja você! E agora a gente alugou um apartamento aqui na cidade, só para os dias que a gente quer jantar com os amigos..enfim...”
A doença já está avançada. Mas ao mesmo tempo a cura está a caminho.
Ao final de um ano, o sujeito se dá conta da fortuna que gasta com a casa e o apartamento.
É a quarta fase.
“Mudamos. Agora estamos aqui naquele apartamentozinho que eu te falei...sabe como é...as crianças sentiam falta das amiguinhas e, cá entre nós, a Marisa...ela é urbana, percebe?”
Está curado.

13.10.04

5

Acabo de completar 40 anos.
Tem alguma coisa errada em completar 40 anos. Primeiro porque ao invés dos tradicionais efusivos parabéns, a maioria dos cumprimentos que você recebe são uma espécie de consolo. Do tipo "Calma, rapaz. É só a metade da sua vida!".
Alias, só agora percebo que essa idade é uma espécie de debut as avessas. Se tudo correu de acordo com o que se esperava de você, aos 40 você está a ponto de se despedir da sociedade. As melhores festas que você vai frequentar são as que você levará seus filhos e de agora em diante, se você decidir dançar, a única companhia que você vai conseguir é a de uma hérnia de disco.
Por falar em festas, também como um debut, a festa de quarenta anos gerou ao seu redor muita expectativa e uma infalível indústria, cheia de opções.
Comece escolhendo o local. As opções mais concorridas são um bar repleto de balzaquianas incluídas no preço, uma churrascaria rodízio ou um buffet infantil. O bar funciona se você não é frequentador assíduo. Caso contrário, melhor não misturar sua família e amigos do escritório com suas amigas de bar. Muitas delas devem achar você mais novo e mais solteiro do que você realmente é. A churrascaria, por sua vez, funciona bem para festas mais familiares. Os filhos de todos os seus amigos podem correr a vontade e incomodar as mesas vizinhas, cujos filhos estarão ocupados em incomodar você. A última opção é, de longe a mais constrangedora. Festas de adultos em buffet infantil não funcionam bem, a não ser que você sonhe em passar a mão na pequena sereia.
No meu caso, optei pela festa em casa mesmo. O que cria uma série de outras opções.
Em casa, você precisa decidir por um serviço de Valete. Sim, porque você não vai querer que seus amigos fiquem procurando vaga na rua, não é mesmo? Então, manda a moderna etiqueta, que você gaste os olhos da cara e contrate alguém para fazer isso por eles.
Aí vem a hora de contratar um bom DJ, o sujeito que dará alma a festa, tocando aqueles discos que você quer esquecer. Normalmente eles fazem uma reunião com você. E nessa hora você percebe como a indústria da festa-dos-quarenta está estabelecida já faz algum tempo. No meu caso o sujeito informou que em festas de quartentões a música é "basicamente dos anos 60". Como assim? Eu tinha 5 anos na década de 60. Em seguida perguntou se haveria telão. Antes que eu respondesse ele continuou "sabe...com um video de fotos antigas". Antigas? Minhas fotos? Meu video?
Justo eu que pensei ter sido criativo com uma coleção dos meus melhores momentos.
Mas talvez o melhor comentário, tenha sido da minha própria mãe. "Que coisa, hem filho? Você está entrando nos enta...e dos enta, ninguém sai..."
Então é isso. Para mim é uma festa. Para ela, um bota-fora.

4

Quando você viaja de classe executiva, tem direito a ficar na sala vip da companhia aérea. Lá geralmente, eles colocam uns salgadinhos, uns sofás confortáveis e bebidas de graça.
Tudo parte da estratégia de fazer você pensar que é realmente um sujeito very important, e, convencido disso, na próxima viagem pague o dobro do peço de uma passagem normal por um cotovelo a mais de poltrona.
Alguém que merece ser tratado com alguma dignidade, livre do calor humano do passageiro ao lado. Em troca de uma passagem imoralmente mais cara. Confesso que toda vez que alguém paga para que eu viaje em classe executiva, não sou capaz de negar. Tudo por causa da sala vip.
Gosto de fazer parte daquele grupinho de pessoas que, a cada vôo, organiza rapidamente uma espécie de complô contra os passageiros da classe econômica. São um punhado de estranhos que rapidamente estabelecem um vinculo entre si. Passando pelos portais da sala vip, qualquer um fica mais educado. O sujeito vai pegar um suco de laranja e dá passagem para outro, num educado gesto de cabeça enquanto um outro senta-se confortavelmente para ler o fac-símile do New York Times.
Na sala vip da classe executiva, o mundo é como deveria ser. Com a vantagem de você saber que em algum outro ponto obscuro do aeroporto, estão os passageiros da econômica, sentados em cadeiras duras, com fome e com sede. A musica é suave e você pode desfrutar em paz, o prazer de ser especial.
Ninguém descobriu ainda uma maneira de separar os passageiros de primeira classe dos de classe executiva, dentro da sala vip. Ficam todos misturados, trocando gentilezas. Se você for perspicaz, rapidamente percebe quem são os primeira-classe. Pelo corte de cabelo ou pelos sapatos, sempre dá pra descobrir. Eles não se identificam porque guardam o melhor para o final.
Gostam de saborear os poucos segundos do embarque, quando você é obrigado a passar por suas gigantescas poltronas de primeira classe para encontrar o seu lugar na executiva. Por isso não acho justo os aviões onde a primeira classe fica à esquerda e a executiva à direita. Percebe? Faz parte do preço da passagem que uma classe menos privilegiada passe pela outra. No avião e no mundo deve ser assim.
Você passa pela primeira classe numa lenta procissão reverenciando o status. A ética manda que você não sorria, nem cumprimente os passageiros de primeira classe, mesmo que tenha sido gentil com ele na fila do canapé de caviar da sala vip. Agora, sua cumplicidade acabou. Vocês são de castas diferentes. Você que encontre sua poltrona na executiva e aproveite para olhar nos olhos de todos os passageiros da econômica que passarão por você.
Você se senta e começa o desfile. O bom senso e a educação mandam que as aeromoças não sirvam nada até que a maioria dos passageiros de econômica estejam devidamente empilhados lá atrás.
Cabe a você, portanto, escolher o passageiro que mais se pareça com seu vizinho e quando ele passar, você pede delicadamente uma champagne para a aeromoça, que – na executiva – sempre está por perto.
Faz parte do jogo que os de econômica fiquem morrendo de curiosidade a respeito dos prazeres que estarão sendo privados. Alguns aviões tem cortinas separando as classes, não para evitar constrangimentos, como você poderia imaginar, mas sim para tornar a curiosidade ainda maior. Alguns viajantes de executiva relataram que passam boa parte do vôo tentando descobrir o cardápio do jantar da executiva, olhando apenas pelas frestas da cortina.
Não é o caso do meu pai.
Na primeira vez que meu pai viajou para Nova York, acostumado com anos e anos de ônibus, sentou no primeiro acento disponível. Ninguém explicou que o avião tem lugares marcados. Então ele escolheu um perto da janela. Minha mãe ficou com o do corredor. Embarque completo, check de portas, a aeromoça oferece champagne. Meu pai nunca bebe, mas com oito horas pela frente, por que não? Brinda com minha mãe. Os dois sorriem, surpresos com o conforto das poltronas e alheios a uma calada movimentação das aeromoças.
Muito antes da demonstração do equipamento de segurança, a aeromoça já havia descoberto que os dois passageiros que faltavam na econômica eram meu pai e minha mãe. E já os havia mandado para seus devidos lugares, bem perto da asa.
Meu pai estranhou o aperto do acento. Mas por poucos minutos.
A champagne faz efeito rápido.

3

Leio quase de tudo.
De livros de auto-ajuda ao jornalzinho da escola das minhas filhas.
Em geral, toda literatura é cativante.
Outro dia, por exemplo, no jornalzinho da escola tinha uma entrevista com a faxineira, a D. Dalva.
Quando questionada sobre suas funções na escola, Dalva informou que faz de tudo. De limpar banheiros a fazer bolinhos.
Não acho muito adequado que a funcionária que limpa os banheiros também faça os bolinhos.
Acho que, ao menos, esta informação deveria ter sido filtrada e entregue aos pais de maneira menos contundente.
O fato é que a singeleza com a qual Dalva associou o fato de limpar latrinas com fazer bolinhos, me fez pensar que talvez ela não limpe as mãos com o devido rigor entre uma tarefa e outra.
Claro que este fato não é relevante se a rotina da escola for primeiro fazer bolinhos e depois limpar os banheiros. Mas acho difícil. A lógica sugere que Dalva limpe os banheiros antes das crianças chegarem e depois, dedique a segunda parte da manhã na confecção dos tais bolinhos, para servi-los no almoço.
Outro dia, quando deixava minha filha em sua classe, um camundongo passou correndo por nós. Ela adorou. Está convencida que é o Mickey. O bichinho entrou no banheiro. Fui atrás, mas não consegui encontrá-lo.
Eu sei que, na verdade, camundongo não é o Mickey. Sei também que camundongo é um eufemismo para rato de esgoto. Um rato de esgoto no banheiro da D. Dalva. Faz a gente questionar a habilidade da Dalva em limpar banheiros.
Não sei sobre sua habilidade em fazer bolinhos, mas confesso que perdi a fome.
Nos livros de auto-ajuda também encontro constatações fascinantes.
Por exemplo encontrei um livro chamado “Aprenda a se conhecer”. Se conhecer? Mas espere...eu me conheço.
Alias, eu me conheço melhor do que qualquer pessoa.
Quem não me conhece é o sujeito que escreveu o livro.
Existe muito talento em quem é capaz de transformar em best-seller, um livro cujo título é "Manual do Auto-Conhecimento". O sujeito é capaz de escrever um livro sobre você, sem nem sequer conhece-lo.
E você é capaz de comprá-lo e ainda indicar aos amigos.
Auto-ajuda tornou-se uma ciência como...como Astrologia.
Duro é o fato de que tanta ajuda, apenas mostra que você e eu somos sujeitos comums e previsíveis.
Apenas conceitos genéricos e superficiais, são capazes de descrever suas e minhas mais profundas características.
Aquelas manias que faziam você pensar que era especial? Capitulo 3: "Como ser diferente".
Aquelas sacadas únicas, que faziam as mulheres sucumbirem ao seu charme? Capitulo 7: "Dez frases de efeito para conquistar mulheres".
Aquele jeito intrigante de segurar o copo de whisky? Capitulo 12: "A linguagem corporal fala por você".
E assim vai.
Você, inteiramente documentado.
Pensando bem, devo estar deprimido.
Afinal, qualquer um que acha os bolinhos da D. Dalva, o Mickey e livros de auto-ajuda igualmente lamentáveis, não pode estar muito bem.